COMO É LER ÁRABE DE VERDADE?

Todos nós já vimos estas letras ligadas, com pontinhos em cima e embaixo, circuladas por traços e símbolos menores, mas como será que elas funcionam na prática? Hoje vamos ver como o alfabeto arábico foi desenvolvido, como funciona realmente e o que o faz tão único!

(Árabe nabateu talhado em pedra, 265 d.C, em Umm Eljimal, norte da Jordânia)

De onde as letras surgiram?

 

O alfabeto chamado de “perso-arábico” (por ser também amplamente utilizado na língua persa) surgiu no mesmo lugar em que o latino (usado no português e outros idiomas), ou seja, na Fenícia, atual Líbano. No caso das letras que você está lendo agora, são uma variação dos símbolos gregos que, por sua vez, são modificações dos caracteres fenícios.

Os árabes, mais precisamente, os nabateus (que viviam no atual Iêmen), adotaram esta escrita fenícia para escrever o idioma deles, o árabe nabateu, pois eram, em grande parte, nômades e comerciantes que nunca tiveram contato com outro tipo de alfabeto, tampouco havia a necessidade de registrarem algo por escrito. À medida que as letras foram se difundindo, elas começaram a ser escritas de modo diferente; as formas passaram a se deformar para acomodar ligaduras, e muitas letras acabaram se tornando, literalmente, idênticas!

Nos primeiros séculos, o que conhecemos como “árabe clássico” começou a surgir, e iniciou-se também a era dos grandes poetas árabes. Estes artistas costumavam memorizar textos inteiros, e usavam o alfabeto primitivo que conheciam para os registrar. O sistema era tão básico que vários sons eram representados com a mesma letra, a maioria das vogais não era escrita e palavras não tinham um padrão específico, como se eu escrevesse “caza”, você, “kaza”, e um terceiro, “qása”.

Na época, os únicos capazes de lerem o texto eram aqueles que os escreveram ou o tinham memorizado. Na prática, a escrita era mais usada para memorizar obras que, depois de serem transmitidas oralmente, não se tinha mais registradas, então eram escritas deste modo para que aquele que a tinha memorizado pudesse fazer sua revisão. Mas como eram estes textos na prática?

Ler árabe no período pré-islâmico era como ver esta frase: “oocı o onsmcnt” e ler “poder do pensamento”, ou seja, muitas letras são idênticas e a maioria das vogais é omitida. Isto porque bê, dê, pê e quê têm o mesmo formato (o) sendo diferenciados pelo traço que os acompanha (bdpq), assim como cê e ê (ce). Lembrando vagamente da frase e estando acostumados com estas limitações, conseguimos lembrar das palavras mais facilmente com “oocı o onsmcnt” do que sem registro algum.

(Alcorão de Birmingham, em torno de 568 e 645 d.C, com alguns pontos sinalizados, mas sem diacríticos)

Como a escrita se desenvolveu?

 

Depois do advento do islã por volta do início do século VI, o texto sagrado da religião surgia: o Alcorão. Este é um livro cujas palavras exatas eram extremamente protegidas pelos muçulmanos da época, no entanto a maioria das pessoas não tinha instrução para ler e escrever, incluindo o próprio profeta do islã, Muhammad (também conhecido como “Maomé”). Após sua morte, os textos que eram transmitidos oralmente foram compilados em forma escrita e relativamente padronizada.

Com o avanço da religião, muitos novos muçulmanos, não sendo falantes nativos da língua árabe, não tinham acesso à leitura do texto (que é tradicionalmente recitado por crentes mesmo sem a compreensão total das palavras). Não contendo vogais nem diferenciação de muitas letras, precisava-se interpretar o texto através de sua gramática, o que era impossível para quem não fala o idioma nativamente.

Os característicos pontos, mesmo antes do Corão, eram ocasionalmente usados pelos nativos que buscavam um modo de diferenciar as letras, deixando o texto mais fácil de ser lido. Eles foram oficialmente patenteados pelo gramático Nasser ibne Asim Alaite (Nasr ibn ‘Asim al-Laythi) e Iáia ibne Iamar (Yahya ibn Ya’mar) no século VI, deixando um texto que se parecia com “oocı o onsmcnt” como “pder d pnsment”. Já os traços (as vogais) foram inventados por Abu Alaçuade Alduali (Abu al-Aswad al-Du’ali) no mesmo século, tornando o que entes era “pder d pnsment” como “poder do pensamento”.

Apesar de as vogais existirem, elas não são usadas senão em contextos em que sua ausência dificulta muito o entendimento ou em materiais didáticos, pois os nativos estão acostumados a ler deste modo. Nós, falantes do português, também usamos um sistema parecido quando escrevemos “pq”, “vc”, “qnd”, “ñ”, “aq”, “bjs”, “vlw” etc. Se usássms cm mis frqênci, estríms mis acstmads a lrms dst mod.

Este tipo de escrita é chamada de “abjad”, e é usado em línguas semíticas tais como o hebraico e assírio (aramaico moderno falado na Síria). Estes idiomas também usam um sistema de vogais opcionais que, por sua vez, foram feitos baseados no sistema árabe, uma vez que este, por ser o único a ter um meio para as representar até então, preserva palavras de origem semítica em texto escrito. Um exemplo disto é “Allah” (Deus) que se diz “Eloh” em hebraico (apesar do plural majestático “Elohim” ser mais comum) e “Alaha” em aramaico (cujas vogais variam de acordo com declinações).

(Impresso moderno do Alcorão no formato urdu ou “indopak”, com pontos, vogais e diacríticos extras)

Como são o alfabeto e os fonemas na prática?

 

O consonantário árabe (chamado como tal por ter suas vogais curtas omitidas na escrita) é composto por 29 letras no total, variantes de 18 formatos (sem os pontos). Cada letra tem um som exato e único, ou seja, não existe um som representado por mais de uma letra (como “nh”, “lh” e “ch” em português), nem uma letra com mais de um som (como “x” em “tóxico”, “exemplo”, “eixo” e “trouxe”), tampouco um som que possa ser representado por mais de uma letra (como “aço” e “asso”). Além de 29 sons de consoantes, só existem três vogais básicas: “a”, “u” e “i”, e nenhuma outra (exceto em dialetos).

O texto em árabe, assim como hebraico e aramaico, é escrito da direita para a esquerda. Isto acontece porque, nos primórdios do idioma, as letras eram escritas em pedras, fazendo com que a escrita se tornasse mais fácil sendo entalhada segurando o cinzel com a mão esquerda e empurrando com a direita dominante da maioria destra. Quando se começou a escrever com tinta, o sentido se manteve.

Apesar de poucas vogais, existem vários sons de consoantes que são dificilmente vistos em outros idiomas, tais como o “tha” (ث), lido como o “th” no inglês, e o “hamza” (ء), sendo uma parada na glote como quando falamos “o ou” para um acidente. Mesmo tendo quase 30 sons distintos uns dos outros, letras como pê, vê e gê e vogais como “o” e “e” não existem senão em alguns dialetos (exceto pê e vê, sendo um dos pouquíssimos idiomas do mundo que não os têm). Fora isto, possui a letra “ayn” (ع), cuja pronúncia é feita pela faringe, sendo praticamente a única língua que ainda distingue este som no mundo.

Algumas das letras não se alteram quando ligadas, como a letra “ta” (ط – t) cuja única diferença é um pequeno traço com a próxima (ططط – ttt). Outras formas nem se unem senão com as anteriores, como “ra” (ر – r) que também não muda nada no processo (طرط – trt). Já outras, pelo contrário, se unem e se alteram totalmente, como “ha” (ه – h) que nem é reconhecível após a ligação (ههه – hhh). Certos símbolos, estando unidos, se alteram muito pouco, como o “mim” (م – m) que só perde sua “perninha” final para fazer a conexão com a imediata seguinte (ممم – mmm).

Os pontos não alteram as ligaduras, como da letra “jim” (ج – j), cujo ponto não muda de lugar, independente do formato que venha a assumir (ججج – jjj). Quanto às vogais, sendo curtas, são escritas como diacríticos (símbolos que vão em cima ou embaixo das letras, como o til em “ã”), por exemplo, o “u” é um “novezinho” superior (جُ – ju), mas o “u”, sendo longo (sílaba tônica como o “u” de “júbilo”), é escrito como uma consoante na frente da própria letra (جو – jú).

(Exemplo de caligrafia árabe comum manuscrita) 

Escrever árabe é tão complicado assim?

Com os traços, pontos e ligaduras, o idioma pode se mostrar muito intimidador para quem vê um texto repleto de diacríticos, mas, na verdade, este excesso de traços se dá pelo fato de o idioma poder ser muito bem-sinalizado, como se (quase) sempre juntássemos as letras e puséssemos acentos em todas as sílabas tônicas. E, como visto anteriormente, as vogais curtas podem ser omitidas, mas não as longas.

Diferente de um texto comum, o Alcorão é o mais marcado, pois sua exata pronúncia e recitação é prezada a ponto de os fiéis não quererem que nem uma pequena pausa seja confundida. A estrutura deste livro é diferente da de um jornal, artigo ou qualquer outro trabalho escrito, pois a adição de cada vogal é considerada um exagero para um leitor nativo comum, e, muitas vezes, pode até atrapalhar.

Além destas ligaduras padrão, o modo com que os símbolos se ligam depende da caligrafia da pessoa que escreve ou da fonte usada. Existem fontes mais complicadas que transformam as palavras de modo mais elaborado, estilos que são empregados nas famosas artes islâmicas criadas através da caligrafia árabe. Muitas caligrafias artísticas não são feitas para serem lidas, já outras têm menor legibilidade, mas são compreensíveis para os mais afeitos.

O maior desafio para o estudante está, contudo, na pronúncia das letras, uma vez que as reconhecer se torna costumeiro depois de algumas repetições. Acostumar-se a ler um texto sem vogais também pode levar um tempo, mas, por o árabe ser uma língua litúrgica, é amplamente estudado, resultando em diversos materiais disponíveis na internet, e contendo, sim, alguns diacríticos esclarecedores.


Escrito por: Luis Talamini, professor da Idioma Independente no Rio Grande do Sul

Para contato: luistalamini.ii@gmail.com

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